quinta-feira, 15 de setembro de 2011

REN - Parte 1

O homem chegou depois das orações matinais. Rapidamente se espalhou a noticia de que viera alguém e os rapazes do orfanato de Santo António acotovelaram-se e esticaram-se para conseguir vislumbra-lo enquanto ele desatrelava o cavalo e o conduzia `a gamela para beber. Era difícil ver o rosto do homem, pois tinha o chapéu tão puxado para baixo que a aba quase lhe tocava no nariz. Prendeu as rédeas a um poste e depois ficou ali, de pé, a dar palmadinhas no pescoço do cavalo enquanto este bebia. O homem esperou, os rapazes observaram, e quando a égua finalmente levantou a cabeça, viram o homem inclinar-se para a frente, acariciar o focinho do animal e beijá-lo. Depois limpou os lábios com as costas da mão, tirou o chapéu e atravessou o pátio em direcção ao mosteiro.
   Era frequente aparecerem homens para vir buscar crianças. As vezes vinham `a procura de mão-de-obra barata, outras vezes movidos por um desejo de fazer o bem. Os irmãos de Santo António alinhavam os órfãos e os homens andavam para trás e para a frente, a inspecciona-los. Era fácil perceber o que procuravam pela direcção do seu olhar. Geralmente, os seus olhos detinham-se nos rapazes de quatorze anos, os mais altos, os mais vistosos, os mais fortes. Depois desviavam-se para aqueles que mal tinham começado a gatinhar, para os meninos cambaleantes de dois anos ainda puros e frescos. isso deixava os que estavam no meio - aqueles que já tinham perdido a gordurinha de bebé e os caracóis mas que ainda não tinham idade para serem úteis. Estes meninos eram geralmente mal-humorados, e tinham pouco a oferecer alem de estômagos vazios e grandes infestações de piolhos. Ren era um deles.
   Não tinha qualquer memoria de um principio de uma mãe ou pai, irmã ou irmão. A sua vida era simplesmente ali, no orfanato de Santo António, e aquilo que recordava começa no meio das coisas o cheiro a lençóis fervidos e a lixívia; o sabor de papas de aveia aguadas; a sensação de deixar cair um tijolo sobre uma pedra, ver os fragmentos vermelhos espalharem-se, e depois usar os pedaços partidos para escrever na parede do mosteiro e ser espancado por isso, e ser obrigado a lavar os riscos com um trapo molhado e frio.
   O nome Ren fora cozido na gola da sua camisa de dormir: três letras bordadas com linha azul-escura.

1 comentário:

  1. Bem, Lucas, és mesmo uma surpresa! Quero escrever aqui que conseguiste cativar a minha atenção com a tua escrita e que aguçaste, de forma definitiva, a minha curiosidade relativamente a este conto e a ti, enquanto escritor. Estou "em pulgas" para conhecer o destino de Ren!
    Sandra Silvestre
    :o))

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Gosto de ser o centro das atenções. odeio a solidão e o escuro. obcecado por música, criativo, bom gosto, realista, diferente. não faço este blog para no fim receber um aplauso, ou uma palmadinha nas costas. muito menos o faço para terem pena de mim ou para me armar em coitadinho. escrevo para vos mostrar que sou como qualquer outro ser humano. sorrio, choro, sonho, acredito, sinto, grito, suplico, escondo-me e fujo. tenho medo da realidade então confio demais no silêncio.

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